Vera Iaconelli – Folha de S.Paulo
E Deus criou o Brasil com a melhor fauna e flora de sua invenção e ainda poupou-o de vulcões, terremotos e furacões. Ao ser perguntado porque criava verdadeiro paraíso na Terra, Deus respondeu: mas o povinho que eu vou colocar lá... Cresci ouvindo essa piada em versões curtas e longas, sem juntar os pontinhos que me levariam obviamente a fazer parte do "povinho", ou ainda imaginando que se tratava do povinho que não incluía a nós. Nós quem, bwana?
Embora sejamos milhões, uma certa "brasilidade" com a qual nos identificamos, mas também nos debatemos, nos une. Assumindo que os demais povos são intrinsecamente melhores, vilipendiamos a figura do brasileiro a cada oportunidade e, quanto mais abaixamos para melhor criticar, mais mostramos o rego, como diria o outro.
Com um dedo apontando para a frente e os outros quatro para si mesmo, segue o brasileiro aspirando pelo modo de vida europeu ou americano. Mas viajar de férias para esses lugares não equivale a viver sem empregada doméstica ou usar serviços de saúde, transporte e educação públicos, abrindo mão da ostentação e das benesses. Tampouco é aceitável fora daqui o "jeitinho brasileiro", jeito carinhoso de tratar nosso desprezo pelas instituições que a duras penas construímos e tentamos manter.
Seguimos com essa ambivalência que nos corrói até o osso, ora cantando nossas qualidades naturais, ora justificando nossos deslizes cívicos. E é nesse espaço de autodesprezo que se infiltra um autoritarismo sempre à espreita, marca de um ódio a si mesmo que não perde a chance de se manifestar a cada momento de transição social.
A apropriação privada indevida de bens e pessoas, que marcaram a história da colônia Brasil, continua atualíssima. A marca da escravidão nos assombra a cada esquina com nossos carros e casas blindadas e com nosso convívio branco em circuito fechado -shoppings, escolas, clubes e restaurantes, devidamente à prova de negros e pardos, salvo os que estão ali para nos servir.
A exploração da riqueza comum como bem privado sem pudor, pelo contrário, com franco exibicionismo, é marca do ódio ao Brasil. Nesse quesito, nada há de original, uma vez que a colônia Brasil foi criada para a exploração europeia -ao que se seguiu um salve-se quem puder, dita independência, restando a urgência de se safar o quanto antes com o máximo que se puder levar, claro. É como se o projeto de um país fosse impensável para nós brasileiros. E segue o brasileiro sonhando em morar em Miami, enquanto estrangeiros sonham com o Brasil, geralmente, quando procuram turismo sexual.
Paradoxalmente, é a própria falta de aposta na cidadania e no valor do espaço público compartilhado que cria a situação da qual pretensamente o brasileiro busca fugir.
Nessas férias, nas quais nos rejubilamos por integrar um país "bonito por natureza", quente e "cordial", lembremos que ele é majoritariamente negro, que é rico (embora desigual), jovem e complexo. Pensemos em nós brasileiros, portadores de uma história a ser reconhecida, com um pouco mais de amor. Amor que nunca prescinde da crítica, sem a qual nada se pode construir. Mas uma crítica de quem pretende continuar apostando na construção de um país e não de quem só quer melar o jogo.
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