* Amin Stepple
2015 é um ano que os brasileiros gostariam de passar o corretivo. As contas no rosário de queixas são muitas. A economia cumpriu, mais uma vez, o rito cíclico: jogou-se nas profundezas do penhasco. Igual às moças dos escritórios de contabilidade dos contos de Tchekhov, deixou de sorrir. Superando a imaginação especulativa dos analistas e cientistas políticos, houve a multiplicação dos mordomos dos filmes de terror. Mas nem tudo foi desperdiçado. A língua portuguesa deve agradecer a 2015. Os desatinos do Planalto central deram sua contribuição milionária (com e sem trocadilho) à última roseira do Lácio. O Brasil é um país surpreendente: quanto mais pobre fica, mais enriquece o vernáculo.
A velha propina, esporte nacional, foi rebatizada. Chama-se agora pixuleco. Gíria tão estranha quanto uma nota de 13 reais. Mas caiu bem na língua ferina do povo. Delação premiada, um novo verbete de multiuso, a bombril de todos os sete pecados capitais. Muitos casamentos, supõe-se, serão salvos a partir de agora. Perdão foi feito pra gente pedir. Mas foi o príncipe da reeleição, Fernando Henrique Cardoso, que jogou a primeira pedrada nos que resistem ao escalpelo da perda de poder. Lembram-se? FHC, com a vaidade garbosa do alto dos seus 80 anos, pediu à presidente Dilma que renunciasse ao cargo. "Seria um gesto de grandeza". Um "gesto de grandeza", expressão que torna mais nobre o prosaico e vilipendiado exercício político. No entanto, as retinas fatigadas de FHC se recusaram a encarar esse mesmo gesto quando da Emenda da reeleição. Os historiadores devem um cálculo à nação: afinal, quanto custou a mesa luculesca?
Recentemente, o PPS pediu ao presidente da Câmara, Eduardo Cunha, um gesto de grandeza (fac-símile de FHC), que ele renunciasse para a felicidade da nação. O PPS é aquele partido que sobreviveu ao desmanche dos crimes stalinistas. O gélido Dudu Cunha deve ter devolvido à proposta dos neocomunistas (ridículo, não?) o sorriso cínico ( ou de rendez-vous, na definição do poeta Oswald de Andrade sobre o sorriso de Getúlio Vargas) que se tornou símbolo da política nacional. Mas a expressão também servirá, daqui para frente, para definir melhor outras situações, não necessariamente de origem política.
Exemplos não faltam. A totêmica Ronda Rousey (a grandinha), se recuperando da pernada no rosto da bruxa malvada Holly Holm, declarou há poucos dias que passará seis meses sem poder mastigar uma maçã. Um gesto de grandeza. Superior ao da Eva bíblica, que, ao cair logo em tentação, nos expulsou do paraíso. Graças à compulsão de Eva por maçãs argentinas, vivemos hoje na colônia penal do universo. O que dizer então de Max Brod, o amigo de Kafka? A história é conhecida. Sufocado em golfadas de hemoptise, o escritor (que se tornou adjetivo popular, glória reservada a poucos) pediu ao seu companheiro de incursões nos cabarés de Paris, que destruísse tudo o que escreveu. Max Brod se recusou a incinerar Gregor Samsa e a todos os assustadores personagens da família K. Que gesto! A humanidade tem uma dívida de gratidão com esse rapaz.
Já os escritores deveriam ter em relação aos seus personagens a mesma conduta que os políticos têm com a nação. Desprezo à grandiloquência. Nem sempre isso ocorre. No conto "O muro", de Sartre, um dos condenados ao pelotão de fuzilamento, caminha em direção ao paredão, e se desvia de uma poça d'água para não sujar os sapatos. Tudo bem, só se recupera a dignidade onde se perde. E é preciso humilhar a morte, mesmo nos minutos finais. Mas para quê impor ao coitado sentenciado o último gesto de grandeza?
O bom escritor sempre coloca dúvidas de elevada magnificência na cabeça do leitor. E ninguém mais capacitado para essa recreação do que Machado de Assis. No clássico "Dom Casmurro", Capitu traiu ou não o marido Bentinho, com o amigo Escobar? Consumido por ciúmes imaginários (?), Bentinho se separa de Capitu e rejeita o filho, muito parecido com Escobar. Faltou um gesto de grandeza ao corno vocacionado Bentinho? Ou ao suposto comborço Escobar? Ou ainda a Capitu? Uma dúvida que vai durar 300 anos. Certamente Machado de Assis, pouco afeito a comportamentos hiperbólicos, não compreenderia o atual momento político que o país atravessa, em que elementos suspeitíssimos pretendem oferecer lições magnânimas e moralizantes à História.
Num gesto de grandeza, 2015 vai recolhendo os seus próprios destroços. Talvez as moças dos escritórios de contabilidade exultem: "se é por falta de adeus, até logo". Já a luta dos brasileiros contra "o metro adverso" da política e da economia vai continuar em 2016. São as previsões do passado. Tão tediosas quanto a literatura natalina. Mas abra-se exceção para Machado de Assis. No famoso "Soneto de Natal", Machado, no verso final, volta a nos povoar de dúvida: "mudaria o Natal ou mudei eu?" Em 2016, mudaria o Brasil ou mudamos nós? O que fazer para não cairmos de vez na noia do verão da nossa desesperança? O consolo é que o carnaval começa mais cedo, com novas e velhas máscaras. "Com o pierrot aconteceu assim: levando esse grande chute, foi tomar vermute com amendoim". Como se diz na gíria das ladeiras olindenses: é das androlas.
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