Por José Nêumanne*
Algo grave aconteceu sem que se tenha prestado atenção aos assuntos nem sua gravidade. Um dos temas tem que ver com foro de prerrogativa de função para, no mínimo, 55 mil “otoridades”, que não respondem por eventuais delitos à primeira, mas à última instância. Outro é a guerra surda entre dois órgãos do Estado que disputam a preferência do público pagante para premiar sua eficiência no combate a crimes de corruptos de alto coturno em todos os podres Poderes da República com a primazia na negociação para atenuar penas de colaboradores da Justiça.
Na semana passada, o ministro Edson Fachin, relator dos processos da Operação Lava Jato no Supremo Tribunal Federal (STF), decidiu manter sua decisão de encaminhar para a primeira instância uma série de recursos apresentados por investigados do chamado "quadrilhão do PMDB da Câmara", que afetam diretamente a vida, a ficha e o histórico processual de três altíssimas autoridades do Executivo: o presidente Michel Temer, o secretário-geral da Presidência com status de ministro, Wellington Moreira Franco, e o chefe da Casa Civil, Eliseu Padilha.
O advogado de Temer, Eduardo Carnelós, fez um apelo ao relator da investigação pedida pelo ex-procurador-geral da República Rodrigo Janot para que voltasse atrás de sua decisão de encaminhar para a primeira instância (leia-se o juiz Sergio Moro, da 13.ª Vara Federal Criminal de Curitiba) os investigáveis sem foro do processo protagonizado pelo trio palaciano. A alegação em uníssono dos advogados de Temer, Moreira e Padilha era a de que, com a investigação parada por, no mínimo, um ano, enquanto durarem seus mandatos impeditórios, o presidente e os dois asseclas do palácio não poderiam acompanhar as investigações. Fachin não atendeu ao apelo, mas sua decisão ficou na dependência dos votos dos colegas. As questões de fundo – o privilégio de foro em si e a tolerância excessiva do Supremo – não estão sendo sequer levadas em conta.
No STF ninguém abre mão de seus interesses e, portanto, cada um vota por si e danem-se a Pátria e a Justiça. Quanto mais cada ministro da mais alta instância dirige seu olhar interessado apenas para o próprio umbigo, mais cada um deles libera em geral os outros dez colegas para agirem como bem entenderem. Os processos contra Gilmar “deixa que eu solto” Mendes explodiram no submarino argentino no Atlântico Sul. E as suspeitas sobre a delação excessivamente premiada de Joesley “deixa que eu pago” Batista, decidida pelo relator Fachin, habitante das neves do Kilimanjaro, o blindam como se fosse um anjo do Altíssimo fora do alcance de toda malícia. Quanto mais os ministros do STF se vestem de morcegos, mais são tratados como se fossem vestais. E quem garante?
Trava-se, então, uma guerra pelo controle das delações premiadas entre o Ministério Publico Federal (MPF) e o Departamento de Polícia Federal (DPF). Uma guerrilha externa sabota as delações premiadas com as bombas retóricas de escritórios grã-finos de advocacia do País contra a Polícia Federal e a Procuradoria-Geral da República. Em defesa dos propinodutos de grandes fornecedores de obras e serviços de empresas ao Estado, trafica-se na Câmara dos Deputados um projeto de autoria do suplente do PT fluminense Wadih Damus, que recebeu recentemente a adesão do “soldado” Carlos Marun (da tropa que choca de Temer e Cunha), que deixou a relatoria da CPMI da JBS para assumir a Secretaria de Governo (leia-se coordenação das relações “institucionais” entre Planalto e as cumbucas do Congresso). Fartamente divulgado no começo de dezembro, o relatório de Marun, que, afinal, teve seu alcance reduzido e merece sumir nas cinzas da própria CPMI em questão e das CPIs, em geral, acata as propostas à Procuradoria-Geral da República de obrigar por força de lei, que eventuais delatados sejam devidamente avisados assim que o forem. E, por último, mas não por menor importância, que presos não poderão mais delatar. É a união da fome de Temer e Eduardo Cunha, que mandam em Marun, com a vontade de comer de Lula, de quem Damus faz as mais profundas vontades, algumas que nem o ex-presidente petista tem coragem de enunciar.
A delação premiada é um instrumento de investigação que juízes e policiais americanos e italianos, entre outros, usam para destravar investigações, das organizações criminosas, que normalmente param na metade por falta de informações sobre as intimidades destas.
O DPF e o MPF vêm travando desde antes do início da Operação Lava Jato, há mais de três anos e meio, uma guerra surda por poder e fama. Os policiais federais não aceitam o que eles classificam de soberba e exibicionismo dos procuradores, enquanto estes não descansam enquanto não puserem os “tiras” em seus devidos lugares, ou seja, bem longe deles. As delações premiadas e, muito mais do que elas, as investigações em si teriam muito a ganhar se essas corporações se dispusessem a trabalhar em plena cooperação, como dispõe a lei e como convém à sociedade, que lhes paga os salários. Estes, aliás, não são propriamente modestos, e são engordados à sorrelfa por outros privilégios, como as aposentadorias especiais de marajás e outros “penduricalhos” assemelhados aos dos juízes, sob cujo comando deveriam trabalhar como associados, não adversários.
O MPF acionou o STF argumentando que policiais não podem negociar redução de penas. Estão cobertos de razão. Perdem-na, entretanto, quando eles próprios também se arvoram a definir em penas atenuadas prêmios para as delações que negociam para atingir o interesse comum de identificar e processar delinquentes de colarinho branco. Estes são difíceis de serem devassados sem a ajuda de quem a lei identifica como “colaboradores”, não delatores. Policiais devem fazer diligências, buscar provas, pedir perícias a técnicos. Aos procuradores públicos cabe participar de tais investigações para denunciar eventuais delitos em nome do Estado, ou seja, da sociedade. Não é função de policial nem de promotor fixar penas. Por consequência lógica, também não teriam como negociá-las. Na bagunça jurídica brasileira eles brigam por uma prerrogativa dos juízes. Policiais são definidos como agentes e procuradores, como partes. Não podem, portanto, julgar, apenar nem indultar.
E os juízes o que fazem? Escusam-se de impedir a confusão, dirimindo tais dúvidas com celeridade, rigor e clareza. Na semana passada, sob a presidência da procuradora de ofício Cármen Lúcia, sete ministros do Supremo se reuniram, mas a jurisprudência, de capital importância para o destino de réus e da sociedade, foi adiada sine die, e de forma imprudente. Já com 6 votos a 1, pois Alexandre de Moraes, Luís Roberto Barroso, Rosa Weber, Luiz Fux, Dias Toffoli e Celso de Mello se manifestaram contra o relator Marco Aurélio Mello e a favor de a Polícia Federal fechar delações, o processo não foi concluído. Primeiramente porque, como sói acontecer em decisões recentes no órgão máximo do Judiciário, cada um deles prolatou um voto extremamente pessoal sem procurar nada que se aproximasse de algum consenso lógico, prático e racional. Foi encontrada uma saída salomônica: esperar os votos de dois ausentes. Ricardo Lewandowski está em licença de saúde por causa de uma queda que sofreu em casa, mas. Deus do céu, é um voto em 11! E Gilmar Mendes, presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), está nos Estados Unidos, a 15 dias das férias, celebrando um convênio (pasmem todos!) com a Organização dos Estados Americanos (OEA) para que esse inútil e inócuo organismo internacional fiscalize as eleições gerais de 2018 no Brasil.
O novo diretor da PF, Fernando “por qué no te callas” Segóvia, ocupa todo o seu tempo em defender privilégios corporativos. Raquel Dodge, a procuradora-geral, também adotou o lema “Mateus, primeiro os meus”, ao suceder ao desastrado Rodrigo Janot. Enquanto isso, a suprema inoperância, sob inspiração de Marco Aurélio, aceita por Cármen Lúcia, suspendeu uma solução relevante sobre delações premiadas para garantir a guatemaltecos, equatorianos, salvadorenhos e outros andinos e centro-americanos o privilégio de ajudar os brasileiros a contar de forma fidedigna votos que elegerão presidente, Congresso, governadores de Estados e Assembleias. Com esses imensos egos em conflitos, o Brasil não sobe aos picos dos Andes nem contempla os vulcões da América Central: afunda nas profundezas do pélago onde se desintegrou o submarino ARA San Juan.
*Jornalista, poeta e escritor
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