Clovis Rossi - Folha de S.Paulo
Morreu nesta sexta-feira (25) em Havana, Cuba, a esquerda, junto com seu maior ícone, um certo Fidel Castro Ruz, um homem sobre o qual coincidem críticos implacáveis e defensores incondicionais: tinha um carisma extraordinário.
Morre na verdade a esquerda que poderia ter sido e não foi, a que poderia ter sido uma utopia libertária e acabou sendo uma ditadura como tantas outras que ensanguentaram a América Latina.
maQuando nasce a revolução cubana que Fidel Castro liderou, o chamado socialismo real, o da União Soviética, já estava anquilosado, afogado em burocracia e em privilégios para a nomenclatura.
Estamos falando de 1959, apenas três anos depois do esmagamento pelos tanques soviéticos da revolução húngara, uma primeira tentativa de se libertar do jugo ditatorial sem necessariamente jogar fora avanços sociais.
Em Cuba, como de resto na América Latina, a União Soviética era um fenômeno distante, cultuado apenas por um punhado de militantes comunistas e intelectuais seduzidos pelas promessas do socialismo.
O peso real era exercido pelos Estados Unidos, cuja máfia transformara a ilha caribenha num bordel a céu aberto, acariciado pelo azul do Caribe.
O agente cubano do domínio norte-americano era, ainda por cima, um desses ditadores de almanaque (Fulgencio Baptista).
Quando a revolução se livra dele e do que nunca parou de chamar de "imperialismo ianque", foi um imã para toda a América Latina, pontilhada, antes e depois da vitória de Fidel, de ditaduras semelhantes.
Até um crítico feroz do castrismo, como Carlos Alberto Montaner, admite, em artigo para o sítio Infolatam, que Fidel "seria, para sempre, um impetuoso conspirador disposto a mudar o mundo a tiros".
Mudar o mundo, a tiros ou de outra forma, é tudo o que a juventude desejava à época. Se continua desejando ou não, é assunto que não cabe em uma crônica sobre os anos de Fidel Castro.
Pena que a utopia foi sendo abandonada, junto com o "socialismo com sabor tropical", que teoricamente substituiria o modelo cinzento da URSS.
Uma das coisas que mais me chocaram na primeira viagem à ilha de Fidel, em 1977, foi acompanhar um congresso da Juventude Comunista e ver que o documento final, repleto de críticas às ditaduras da época na América Latina (Brasil inclusive), não fazia menção à mais sangrenta delas, a da Argentina.
Explicaram-me então que a ditadura argentina estava vendendo carros novos a uma ilha que vivia apenas dos modelos americanos velhos de 20 ou 30 anos e, por isso, não podia ser criticada.
A utopia trocada pela Ford, meu Deus.
A morte do ícone dessa utopia fracassada encontra a esquerda numa tremenda crise, bem analisada pelo geógrafo francês Christophe Guilluy, em recente entrevista para a Folha:
"A esquerda está num estado catastrófico. Ela não consegue mais atingir as categorias populares. Aceitou o liberalismo e o capitalismo e tem dificuldade de assumir isso".
Cuba não aceitou (ainda) o liberalismo mas está aceitando o capitalismo, com imensas dificuldades. Sem Fidel, torna-se ainda menos farol para a esquerda.
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